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Foto do escritorViolante Longo Ganzerla

Colaboração premiada: conceito, requisitos e legitimidade


A origem da colaboração premiada no direito penal brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, que aqui vigoraram por mais de dois séculos, de 1603 a 1830, quando foi promulgado o Código Criminal do Império. O Título VI, do Livro V daquelas Ordenações, que versava sobre o crime de Lesa Magestade (item 12), ou seja, traição contra a pessoa do Rei ou seu real Estado, previa a possibilidade de concessão de perdão ao traidor que delatasse os demais participantes de conspiração contra os interesses da Coroa, desde que não fosse o líder do grupo. Na mesma linha, o Título CXVI, denominado "Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão", previa a possibilidade de perdão ao infrator-delator que inculpasse os demais co-autores e partícipes, em diversos delitos especificados no texto legal.


A delação premiada esteve presente em vários momentos importantes da história nacional, como a Conjuração Mineira, de 1789, em que um dos conspiradores, Joaquim Silvério dos Reis, delatou os companheiros em troca do perdão de seus delitos e de suas dívidas junto ao Fisco Real, propiciando a reação do governo português e a repressão enérgica ao incipiente movimento de independência, que culminou com a condenação e execução de Tiradentes, apontado como um dos líderes de maior evidência, em 1792.


Alguns autores consideram a colaboração ou delação premiada como um favor legal antiético, tecendo severas críticas aos fundamentos e à eficácia do instituto. Nesse sentido:


  • "O fundamento invocado é a confessada falência do Estado para combater a dita 'criminalidade organizada', que é mais produto da omissão dos governantes ao longo dos anos do que propriamente alguma 'organização' ou 'sofisticação' operacional da delinquência massificada. (...) Chega a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinquência num país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar que só o crime seja organizado? (...) E agora, com esta medida, o Estado confessa abertamente sua incapacidade de exercício do controle social do intolerável e convoca em seu auxílio o próprio criminoso. (...) Qual é, afinal, o fundamento ético legitimador do oferecimento de tal premiação? Convém destacar que, para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor-delator. Venia concessa, será legítimo ao Estado lançar mão de um estímulo à deslealdade e traição entre parceiros, para atingir os resultados que sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Note-se que, ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo, arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo. Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja." (BITENCOURT, Cezar Roberto e BUSATO, Paulo Cesar. Comentários à Lei de Organização Criminosa : Lei n° 12.850/2013. São Paulo : Saraiva, 2014, p. 115/117).


No Direito Penal Moderno, no entanto, o pragmatismo, fundado na incontestável utilidade prática da colaboração no combate à criminalidade organizada, prevaleceu sobre considerações éticas e morais, e o instituto se disseminou em âmbito nacional e internacional.


Com efeito, apesar de configurar uma espécie de traição institucionalizada, estimuladora, em certa medida, de predisposições contrárias à uma cultura moralmente mais elevada (deslealdade, cobiça etc.), trata-se de instrumento de capital importância no combate à criminalidade, porquanto se presta ao rompimento do silêncio mafioso (omertà), imposto aos integrantes das organizações criminosas e às pessoas que, de alguma forma, com elas se relacionam, com emprego dos mais cruéis e variados meios de violência e intimidação.


Prevista de forma mais elaborada na Lei n° 12.850/2013, a colaboração premiada, também denominada de cooperação processual, é uma técnica especial de investigação e de obtenção de prova por meio da qual o investigado ou acusado, admitindo seu envolvimento em atividade criminosa, auxilia a Polícia e o Ministério Público na identificação dos demais integrantes do grupo, na apuração das infrações penais por eles praticadas ou no alcance dos demais resultados previstos em lei, com o escopo de não ser processado ou de obter perdão judicial, redução da pena ou outros benefícios legais.


A colaboração premiada é gênero, do qual a delação premiada é espécie. A colaboração é um instituto mais amplo e abrangente do que a delação. O imputado, no curso da investigação policial, pode, por exemplo, confessar a autoria do fato sem incriminar terceiros, indicando ao mesmo tempo a localização do produto do crime, caso em que será tido apenas como colaborador. Na delação premiada, além de admitir seu envolvimento na prática criminosa, o agente revela a identidade e a atuação dos demais coautores e partícipes, denunciando-os aos órgãos repressivos do Estado.


Para obviar os inconvenientes ínsitos à colaboração do criminoso com a atividade persecutória estatal, a Lei de Organizações Criminosas estabeleceu como requisitos ou pressupostos de validade do respectivo acordo: a voluntariedade do colaborador e a efetividade e eficácia da colaboração.


A voluntariedade da iniciativa do colaborador é um dos pontos mais sensíveis do instituto no plano concreto, ante a real possibilidade de coação para que haja uma colaboração eficaz. Se a experiência prática revela a ocorrência de casos de excessos para obtenção de confissões durante as investigações policiais, nada impede que também possam ocorrer constrangimentos na busca de uma cooperação eficiente, em violação ao direito à não autoincriminação.


Nesse sentido, ante o alto grau de vulnerabilidade a que fica exposto o pretenso colaborador e o alcance probatório que suas declarações podem atingir, é salutar a exigência de homologação judicial do acordo de colaboração, conforme preceitua o § 7º do art. 4º da Lei 12.850/2013. Ademais, nos termos dos §§ 6° e 15, do mesmo dispositivo legal, em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o investigado ou acusado será assistido por defensor, que deverá zelar pela regularidade do acordo, sobretudo quanto à livre iniciativa do colaborador.


Nesse ponto, surge uma questão relevante, que tem ensejado pesadas críticas à atuação dos órgãos responsáveis pela persecução criminal, qual seja, a indevida utilização das prisões cautelares ou da ameaça de sua decretação, como instrumento de coerção à realização do acordo de colaboração com a Justiça. Há relatos, inclusive, de casos de aviltamento deliberado das condições de encarceramento, visando quebrar a resistência do investigado à colaboração, como retratado em episódio da série "O Mecanismo", de José Padilha, inspirada na Operação Lava Jato.


De fato, no cenário político criminal brasileiro recente vem se consolidando certos discursos e práticas de investigação e instrução processual que rompem claramente com as bases do Estado Democrático de Direito, como ocorria até há pouco com a condução coercitiva do investigado para interrogatório (CPP, art. 260), agravada pela ausência de prévia intimação, oportunamente repelida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADPFs n°s 395 e 444.


Cremos que a solução da questão suscitada não está na simples vedação da possibilidade de celebração de acordo de colaboração com investigado ou acusado que esteja submetido à prisão cautelar, como querem alguns, pois isso limitaria excessivamente o alcance e o campo de aplicação do instituto, em detrimento da efetividade do processo penal.


A par da conscientização cada vez maior acerca dos riscos de deturpação da função jurisdicional, decorrentes do envolvimento indevido do juiz na atividade persecutória estatal, em quaisquer de suas fases, com abandono de sua posição de órgão imparcial e garantidor de direitos fundamentais, é necessário o enfrentamento incessante das decisões abusivas no tocante à decretação da prisão preventiva com fins espúrios, no plano concreto da atividade judicante.


O segundo pressuposto exigido pelo legislador é a efetividade da colaboração, que consiste no dever de colaborar de forma plena e veraz, sem artifícios ou reservas, colocando-se inteiramente à disposição das autoridades para a elucidação dos fatos investigados. Isso implica na necessidade de comparecer perante os órgãos estatais todas as vezes que sua presença for solicitada, inclusive para acompanhar diligências investigatórias e atos processuais, quando necessário. Trata-se de requisito que exige avaliação criteriosa, pois nem sempre é possível aquilatar com precisão em que medida o colaborador está auxiliando de fato as autoridades.


O terceiro requisito refere-se à relevância e aptidão da colaboração prestada pelo imputado para produzir concretamente os resultados práticos positivos expressos nos incisos do art. 4º da Lei n° 12.850/2013: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Note-se que tais resultados não devem ser exigidos cumulativamente, bastando a ocorrência de um deles para a validade da colaboração, até porque é possível que em razão da natureza da infração praticada ou visada pela organização, não haja vítima a ser localizada ou mesmo produto ou proveito de crime a ser recuperado.


Como visto, não há que se confundir a efetividade da colaboração do investigado ou acusado com sua eficácia. É possível que o colaborador preste efetivo auxílio às autoridades, esclarecendo todos os fatos de que tenha conhecimento e participando de todas as diligências para as quais fora notificado, sem que tal empenho seja suficiente para concretizar os resultados exigidos pela lei. Nesse sentido:

  • STF: (...) Delação premiada. Perdão judicial. Embora não caracterizada objetivamente a delação premiada, até mesmo porque a reconhecidamente preciosa colaboração da ré não foi assim tão eficaz, não permitindo a plena identificação dos autores e partícipes dos delitos apurados nestes volumosos autos, restando vários deles ainda nas sombras do anonimato ou de referências vagas, como apelidos e descrição física, a autorizar o perdão judicial, incide a causa de redução da pena do art. 14 da Lei nº 9.807/99, sendo irrelevantes a hediondez do crime de tráfico de entorpecentes e a retratação da ré em Juízo, que em nada prejudicou os trabalhos investigatórios (...) (STF, 1ª Turma, AI 820.480 AgR/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, j. 03/04/2012, Dje 78 20/04/2012).


Comprovada a eficácia objetiva das declarações prestadas pelo agente, a aplicação do prêmio legal decorrente da colaboração é obrigatória, constituindo um direito público subjetivo do colaborador e não simples faculdade do julgador. A discricionariedade do magistrado está circunscrita à opção por um dos benefícios legais, a ser aplicado de acordo com a relevância da colaboração e os resultados práticos dela advindos, a personalidade do colaborador, a gravidade do crime etc. (STJ, 6ª Turma, HC n° 49.842/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. 30.05.2006 – Caso de investigador de polícia envolvido em crime de extorsão mediante sequestro, em que o STJ, diante do alto grau de reprovabilidade da conduta, entendeu inviável a concessão de perdão judicial, mas diminuiu a pena em 2/3).


  • STJ: (...) ao contrário do que afirma o acórdão ora objurgado, preenchidos os requisitos da delação premiada, previstos no art. 14 da Lei n.º 9.807/99, sua incidência é obrigatória (...)‖ (STJ, 5ª Turma, HC 84.609/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 04/02/2010, Dje 01/03/2010).


Um último requisito, previsto no § 1° do art. 4° da Lei nº 12.850/2013 deverá ser observado para a validade da colaboração premiada: “a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso ...”. Assim, é possível que mesmo preenchendo os demais requisitos para o acordo de colaboração, o investigado tenha cometido o crime com requintes de crueldade que desaconselhem a adoção do instituto ou que sua conduta tenha causado intensa comoção social em razão dos meios de execução empregados ou da qualidade da vítima.


Com relação à legitimidade para a celebração do acordo de colaboração, cabe a menção ao recentíssimo julgado do Supremo Tribunal Federal, na ADI n° 5.508, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, impugnando a possibilidade do delegado de polícia formalizá-lo, sob alegação de ofensa a diversos dispositivos constitucionais, em especial, ao art. 129, I, que atribui a titularidade da ação penal ao Ministério Público.


Por maioria de votos, o Plenário do STF posicionou-se pela improcedência da ação, declarando a constitucionalidade das disposições normativas contidas nos §§ 2° e 6° do art. 4° da Lei n° 12.850/2013, que conferem legitimidade aos delegados de polícia para a realização de acordos de colaboração, com manifestação do Ministério Público e ulterior homologação pelo juiz competente.


A decisão da Corte Suprema sobre o tema não causa perplexidade, na medida em que prestigia o sistema acusatório e o equilíbrio institucional projetado originariamente pelo legislador constitucional, preservando ao mesmo tempo as atribuições do Ministério Público, como titular da ação penal pública.


O delegado de polícia, que preside e realiza as investigações do inquérito policial é, sem sombra de dúvidas, autoridade abalizada a identificar e avaliar as necessidades da apuração em curso e o procedimento a ser trilhado nessa fase, sendo a colaboração premiada apenas mais um, dentre os diversos meios de obtenção de provas postos à sua disposição, para o eficiente desempenho de sua função pública.


O tempo nos dirá sobre a conveniência de manutenção no ordenamento jurídico da inovação trazida pela Lei n° 12.850/2013 nesse particular, cabendo-nos a fiscalização sobre a atuação da Polícia nas investigações instrumentalizadas por acordos de colaboração premiada e o combate a eventuais práticas abusivas.

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